O anúncio na porta do estabelecimento oferecia justamente o que ele queria: “vendem-se fantasias.” Há quanto tempo desejava uma fantasia nova? Andava tão enjoado de sua fantasia cotidiana que, pelas manhãs, ainda deitado em sua cama, sentia o estomago virar em voltas como um carrossel azedo quando, no relógio, aproximava-se a hora de vestir-se. Abatido, chegou a cogitar estar seriamente alérgico à fiel fantasia de tantos anos – reconhecendo, não sem certa nostalgia, a necessidade de trocá-la por outra nova.
Com interesse desconfiado, examinou novamente a placa provocativa: “vendem-se fantasias”. Hesitou. E se estivesse enganado? E se viesse a descobrir que o que lhe embrulhava o estomago não era propriamente sua velha fantasia? Ademais, o que são enjoos e dores de estômago diante das intempéries do mundo? Que se alinhasse! Sabia não estar mais na idade de trocar o certo pelo duvidoso. Um pouco mais de tempo e sua velha fantasia voltaria a agradar-lhe como se fosse nova.
Aprumou-se, virou o corpo para a rua determinado a dar o primeiro passo para sair da frente da loja. Mas o estômago – traiçoeiro – dera-lhe duro golpe, a boca encheu-se de uma saliva espessa, a cabeça pendeu-se numa zonzeira marítima e sentiu que vomitaria ali mesmo sobre a calçada. Recuou. Apoiou a mão direita na vitrine. Curvando-se sobre si mesmo como um êmbolo retraído, acalentou o estomago com a mão esquerda. Impossível seguir adiante. Seria ele acaso tão diferente dos outros homens? Estava resolvido – e nada o faria mudar novamente de ideia.
– Deseja alguma coisa, querido? – perguntou-lhe uma funcionária, ao vê-lo parado diante da entrada.
Duas gotas de suor correram-lhe as costas. As pernas ondularam como fios elétricos ao poste. A cabeça marejava, mas o estômago já não doía tanto como há pouco. Sentiu-se como um fugitivo que após imensos esforços alcança o outro lado dos muros da prisão – mas que, bêbado de liberdade, com o destino nas pontas das botas, sabe-se, acima de tudo, eternamente criminoso.
– Nada. Estava apenas pensando nas fantasias que vocês vendem aí – respondeu sem acreditar muito na própria resposta.
– E por que você não entra e experimenta uma delas? Vamos! Estamos mesmo na hora de fechar, não há mais clientes e você pode experimentar tranquilamente a fantasia que quiser.
– Hoje não, obrigado. Já está tarde. Quem sabe se outro dia.
– Mas a vida passa tão depressa, querido!
– Eu estava apenas de passagem.
– Você é quem sabe, querido. Depois, de nada adianta lamentar ou rasgar a fantasia - disse ela, rindo do próprio chiste.
– Sei bem disso...
– Bem, se não posso mesmo ajudar, preciso fechar o estabelecimento. Como falei, já estávamos encerrando o expediente...
– À vontade. De fato eu estava mesmo de passagem...
Porta cerrada.
Que se alinhasse. Já havia perdido mesmo muito tempo com essa história. Que se alinhasse! Com certeza, um pouco mais de tempo e sua velha fantasia ainda lhe agradaria como se fosse nova.
Alê Bragion.
Bem! Conformar com a fantasia do dia-a-dia tornou-se normal para as pessoas. Gostei da sua prosa, Alê. Parabéns!
ResponderExcluirAbraços Poéticos Piracicabanos de Ana Marly de Oliveira Jacobino
Delícia de texto Alê!!!
ResponderExcluirSuave, agradável, cheio de coisas nas entrelinhas para pensarmos.
Fantasias são necessárias, ainda mais necessário é trocá-las ou renová-las de tempos em tempos.
Abs.
Muito bom, Alê.
ResponderExcluirEscreveu com leveza um tema difícil para todo ser humano. Conviver com suas fantasias. Muitas vezes difíceis fantasias. Só suas...
Agora fica para nós escrevermos o texto que você a cada frase insinuou.
Parabéns!
Ana, Victor e Zilma!
ResponderExcluirObrigado pelas palavras. E obrigado pela parceira de sempre. Vocês, cada a um a seu jeito, já contribuiram em muito para a "troca" de nossas fantasias - em especial, as fantasias de nossos ouvintes!
Grande abraço e muito obrigado pelas palavras - mais um vez!
Alê.
Realmente, para algumas pessoas, conviver, compartilhar, se equilibrar, até vencer as próprias fantasias, ainda mais compreender que é preciso de tempos em tempos ofertar a oportunidade do novo não é fácil, é preciso aprender a se libertar do passado, seja 'este' dolorido ou feliz, há sempre a frente novas experiências, sobretudo fantasias que podem ser reais e aguardam a chance de paz, de harmonia, de prazer, de descobrir que se está vivo, que a vida lhe espera para embriagar-se da felicidade...
ResponderExcluirBom texto, faz a pessoa refletir que não se pode estagnar, ainda mais das fantasias.
Abraço
CeGaToSi
Fantasias,,,fazer com que o velho vire o novo é importante,,,
ResponderExcluirMas nada como novas perspectivas não teacher?
parabéns pelo texto. Como sempre ilustríssimo!